segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Reflexão de Natal: Jesus seria de esquerda ou de direita?

Sempre me surpreendeu que as pessoas que vivem a sua religiosidade de forma mais pública ou que demonstram convicções religiosas mais fortes, em Portugal e noutros países de tradição Cristã forte, apoiassem causas políticas ou modos de organização da sociedade em oposição a muitas das mensagens dos relatos que temos do que foram os ensinamentos de Jesus.

A crise da dívida soberana que estamos a viver exacerbou a discussão sobre macroeconomia, com muitas das posições políticas determinadas pelas ideologias professadas pelos intervenientes, levando a um diálogo de surdos onde no fim só restam bitaites, bocas e acusações de "os outros" professarem ideias próprias do belzebu. Os argumentos escolhidos pelas partes acabam frequentemente por reforçar a posição que de antemão têm, um efeito conhecido por predisposição para a confirmação (confirmation bias) que tende a dificultar a discussão, mesmo quando as partes estão a discutir de boa fé.

Mas afinal Jesus seria considerado de esquerda ou de direita? Seria certamente uma longa discussão... Ele não parece ter-se preocupado com a organização social (talvez, na sua infinita sabedoria, sabendo que seria impossível mudá-la no tempo da sua vida) apostado antes na  transformação das pessoas.

Uma interpretação moderna das consequências do seu exemplo de vida consubstancia-se na Doutrina Social da Igreja. O mais interessante é que ela parece ser razoavelmente ignorada na discussão ideológica, por um dos lados por pensarem que ela confirma o que pensam, pelo outro por pensarem que diz o contrário. A mim parece-me que tem indubitavelmente elementos interessantes que merecem reflexão, por quem se considera de esquerda e por quem se considera de direita.

As contradições entre as posições políticas e os valores afirmados são particularmente visíveis na sociedade americana, que parece estar cada vez mais polarizada. A hipocrisia que abunda nesta problemática, e não só na américa, foi bem capturada por Stephen Colbert, goste-se ou não do seu estilo. Ele consegue de forma hilariante desmontar um discurso que, invocando-se de tradição cristã, cai em contradição com os valores mais fundamentais de Jesus. Uma reflexão que vale a pena ter a coragem de fazer.


www.colbertnation.com


domingo, 5 de dezembro de 2010

O Contra-Informação morreu ou foi assassinado?

Na semana passada ouvi a notícia de que o programa Contra-Informação, que passava na RTP, ia acabar. Concretizava-se finalmente aquilo que eu há anos temia. Morreu de morte natural ou foi assassinado?

Desde há muito que me admirava como não havia pressão política que fizesse acabar com o Contra-Informação, como aconteceu a alguns outros programas. Imagino que vontade não faltasse, tal era o modo corrosivo e certeiro como os agentes do poder eram retratados. Atribuí esse facto à notoriedade negativa que isso daria ao agente que o tentasse. O programa aparecia  sistematicamente na lista dos programas mais vistos da TV e seria um escândalo (pelo menos nesse tempo seria) que ele acabasse por pressão. Ou então a oposição era suficientemente forte e lá o foi aguentando. Lembro-me que apareceram repetidamente notícias sobre a não renovação de contrato com a sua produtora, que sempre foram sendo ultrapassadas.

Até que, há já alguns anos, começou a acontecer uma coisa que considerei muito estanha. Apesar de o programa ser campeão de audiências (o Contra Fim de Semana, pois quem tinha paciência para aturar uma hora de telejornal a encher chouriços para ver 5 minutos de programa?) o seu horário passou a ser errático: o horário mudava de antemão, várias vezes ao longo de poucos meses; era de amiúde anulado por causa do futebol; foi colocado num horário que imagino ser pouco interessante para a temática (fim da tarde de Domingo, quando passava). Este tratamento a um líder de audiência tem duas explicações possíveis: incompetência pura ou alta eficácia na destruição de um programa. Os programas recorrentes tipo seriado vivem em parte da fidelização da sua audiência num dia da semana a uma hora determinados. Isso torna-se uma tarefa quase impossível se o programa insiste em mudar de horário. Mas se se pretende que a sua audiência diminua, para o poder anular por ninguém o ver, essa estratégia pode ser muito eficaz.

Eu, admirador incondicional do programa, acabei por desistir de o tentar descobrir na grelha da programação. Well done! Mission accomplished! Só se não fizesse mais nada e seguisse quase religiosamente a programação da RTP conseguiria dar com o programa. Ele deve ter acabado a ser passado num dia qualquer da semana a uma hora imprópria, a ser visto pelas "classses C/D, não líderes de opinião" i.e. o seu efeito mordaz completamente anulado. Um cadáver vivo.

Se foi de propósito, foi muito bem executado. Assim sendo , terá sido encomendado ou uma acção proactiva para agradar aos Chefes? Nunca se saberá.

Com o tempo praticamente deixei de ver TV de sinal aberto. O Contra-Informação continuou a sobreviver, não sei com que audiências. Há pouco tempo apercebi-me que passava num canal de cabo, onde talvez o pudesse redescobrir. Os canais de cabo não têm publicidade interminável e costumam manter os horários. Mas não fui a tempo, acabou. Logo agora, que tempos (ainda) piores se avizinham e ainda mais falta faria. Ou talvez por isso.

O Contra-Informação foi um dos melhores programas da televisão portuguesa, e um dos poucos que repetidamente conseguiu desmascarar os tiques e as tretas das figuras públicas portuguesas, com destaque para as da política. Manteve sempre um nível elevado (ao contrário de programas similares noutros países) certamente graças à genialidade das equipas das Produções Fictícias que assinavam os textos. Era hilariante ver figuras públicas a falar dos e com os bonecos a fingir uma bonomia e fair-play que se adivinhava que não sentiam (em Portugal tem-se pouco jogo de cintura e o respeitinho é muito bonito). Foi durante anos o melhor programa de crítica política, independente e certeiro, mascarado de programa satírico e para as crianças (pois se tinha bonecos!). Lembro-me que foi a fonte de informação que, de longe, melhor desmascarou a opção esquisita do negócio da Ponte Vasco da Gama.

Obrigado Contra-Informação. Foste uma luz de esperança e uma fonte de resistência no meio do pântano que se desenrolava à nossa frente, nunca deixando de apontar que o rei ia nu. E agora acabaste. Portugal ficou mais triste e mais pobre.

Greve geral

Algumas reflexões a propósito da greve geral da semana passada.

Greve para quê e contra quem?

Uma greve é um protesto. Esta greve foi um protesto contra o governo, a Europa, a vida, tudo o mais? A falta de objectividade das razões de uma greve  geral é um problema: há sempre muitas razões para uma greve geral e as pessoas geralmente apenas se revêem numa parte dessas razões (aliás o mesmo dilema aparece quando se faz parte de uma organização como um partido político). Decidir se as razões com que se concorda são suficientes ou não para se fazer greve pode não ser uma tarefa fácil. Acresce a este problema que as razões mais publicitadas para a greve podem ser as promovidas por uma facção com uma agenda própria, com a qual pode não se concordar, e não as que consideramos mais importantes.

Um cidadão pode então decidir não fazer greve  mesmo concordando com ela e vice-versa, apenas pelas razões apontadas explicitamente e pelo seu peso relativo na opinião pública. No caso da greve da semana passada, parece-me que o protesto é pouco útil porque: (a) os problemas presentes de Portugal ainda estão longe de estar resolvidos ou de terem chegado ao seu ponto mais agudo, e uma greve geral nesta altura pode ter sido um tiro desperdiçado; (b) o governo e outras entidades estão absolutamente convencidos que estão a agir bem e o protesto pode até fazê-los convencer ainda mais que estão a agir bem, especialmente se a greve ficar muito conotada, mesmo que injustamente, com facções da população como os sindicatos, o PCP ou os trabalhadores da função pública; (c) não é claro qual é a solução que os grevistas pretendem para o problema (e qual é o problema?), podendo parecer que estão a negar a realidade.

Desequilíbrio de forças

Muitos tentam atribuir à greve e aos grevistas um ónus ético negativo. Fazer greve será, deste ponto de vista, uma coisa má porque provoca perdas nas empresas, etc. No entanto, outro ponto de vista é possível: a greve serve para alterar o equilíbrio de forças. E os equilíbrios de forças que podem existir não são em si éticos mas sim resultado das forças relativas dos intervenientes determinadas pelas possibilidades oferecidas pela realidade.

As soluções éticas da sociedade ou da organização de uma empresa são por exemplo, quanto se deve pagar aos funcionários, como devem ser distribuídos os lucros da empresa, qual o grau de responsabilidade de cada funcionário, qual deve ser a responsabilidade social da empresa, etc.

As questões éticas, até por razões práticas, não são muito discutidas. Na prática o que acontece é que a realidade é um equilíbrio determinado pela força dos intervenientes. Naturalmente que aquilo a que se costuma chamar patronato tem a priori muito mais poder do que os trabalhadores: mais conhecimento, mais dinheiro, poder conferido pela propriedade (ou seja, pela lei), etc. É humano que esse poder tenda a ser exercido em proveito próprio. Os sindicatos e o recurso à greve servem para contrabalançar esse poder, de modo a que a parte mais fraca - os trabalhadores - consigam negociar. Se o seu poder crescer muito, os problemas começarão a ser ao contrário: falta de competitividade da empresa ou até falência. O resultado depende de como as partes jogam as suas cartas, o seu poder. Apenas. A discussão ética, podendo ser usada como argumento, não tem que ter nada que ver com isto.

A liberdade de fazer greve

Tem sido observado que a greve geral foi sustentada principalmente pelo sector público, havendo sugestões de que é assim porque só o sector público se pode dar ao luxo de fazer greve pois está muito (sugere-se que demasiado) protegido pela lei.

A mim parece-me um sintoma muito grave que os trabalhadores do sector privado não façam greve pois isso denota falta de capacidade dos sindicatos no tecido empresarial. E um tal desequilíbrio de poder não será bom para a construção de uma sociedade equitativa de produção competitiva. Mas explicar isso é uma longa história que terá que ficar para outra ocasião.

Assim, o problema não será termos um sector público que se dá ao luxo de fazer greve, mas sim um sector privado que não se pode dar ao luxo de a fazer, pela ausência de sindicatos suficientemente fortes.